Música e literatura andam de mãos dadas. A narração polifónica é, de facto, uma realidade indesmentível – a interligação entre os universos da música e do Romance está por todo o lado. Poesia e prosa e música. Ou música e prosa e poesia.
As relações entre a música e literatura são, como expressão artística, uma constante na história. Desde sempre que o texto literário se adapta à música, bem como o inverso. Veja, por exemplo, o Cântico dos Cânticos ou os Salmos: terão sido claramente escritos para serem recitados ou cantados ao som de instrumentos musicais. Música e literatura…
Se pensarmos especificamente nos Salmos, percebemos fortes indicações para os músicos. Falo nos Salmos apenas porque chegam a muita gente, ao contrário do Romance, o grosso da população ainda tem a leitura per si como reservada a nichos, e perceber é preciso.
“Ao mestre de canto. Com instrumentos de cordas”. Outras vezes fala em “Com flautas” e, também às vezes, indicações bem precisas de técnica, como: “Uma oitava abaixo”. Veja as ilustrações que mostram Davi com uma harpa feliz!
O tempo da música e literatura
O tempo está para a música e literatura como a Arquitectura, a Escultura e a Pintura estão para o espaço. As outras artes coexistem no espaço e no tempo: a Dança, o Teatro, o drama wagneriano e o Cinema.
Agora quero que pense no Cinema. Não foi a música que trouxe uma nova dimensão, tornando-o muito mais intenso, ao Cinema? A verdade é que a combinação dos sons direitinhos ao sentido das palavras é um sucesso de intensidade.
A investigação da melopoética explica muito bem a ligação da música e literatura especificamente ao drama:
- os estudos lítero-musicais utilizam os estudos literários para a análise musical;
- os estudos músico-literários usam conceitos da musicologia, como tema e variações, sonata, ponto e contra-ponto, rapsódia, ou géneros musicais – como o choro e o calipso, para a análise literária;
- os estudos de formas mistas, como a canção, a ópera e o lied, apoiam-se tanto na musicologia como nos estudos literários.
E a ópera? Música e literatura! A ópera é uma peça de teatro, literatura, que recebe um banho musical – de tal forma que Richard Wagner terá designado a ópera como a obra de arte total. Pense em como a maioria dos compositores escrevem as suas próprias letras.
Existirão músicos puros que componham sem o texto literário?
O caso sério de Kundera na música e literatura
Kundera sempre viveu dividido entre a música e literatura e antes de pensar em escrever quase optou pela carreira de pianista de Jazz. Os seus romances estão organizados da mesma forma que ele compunha. A analogia entre os dois universos, música e literatura, é gritante e ele próprio afirma que cada parte dos seus romances podia ter uma indicação musical: moderato ou presto ou adágio.
É em Kundera que a polifonia narrativa se faz sentir com intensidade: são sempre vários pontos de vista, fios narrativos misturados e enterlaçados, géneros e formas unidas.
A prova evidente disto é o seu primeiro romance, em 1967, A Brincadeira. Nesta obra, além da voz de um narrador omnisciente, surgem nas sete partes em que se estrutura o Romance, as vozes de várias personagens que se expressam na primeira pessoa.