Leveza sustentável
Milan Kundera dá-nos um dilema entre a liberdade e o comprometimento, dilema disfarçado na dicotomia peso/leveza com uma reflexão sobre o eterno retorno de Nietzsche, em um mundo em que não há o eterno retorno e em que a escolha é cinicamente permitida: não é possível nem a previsão da escolha certa nem a condenação pela escolha errada.
Sem um imperativo supra-humano de orientação comportamental que julgue a escolha, a existência torna-se perplexamente leve. A leveza é, portanto, a inevitável condição humana diante da constatação de uma existência irretornável. (e incontornável)
Milan Kundera e a melancolia do século vinte
Este diagnóstico em forma de dilema, é o eco que Milan Kundera faz ao pensamento que marcou a Europa aguerrida e melancólica do século XX, tal como Nietzsche, Heidegger e Sartre – os temas sobre os quais estes autores se debruçaram apontam para um mesmo cenário: a condição humana em determinismo moral e um consequente conforto ético.
O Homem, dono de nada
A era dos existencialistas é aquela das consequências e das rejeições em relação aos anseios racionalistas de fundamentação do humano em coisas como a certeza e a razão. Milan Kundera desintegra estes conceitos cartesianos focados no homem como dono da natureza: depois de conseguir abraçar e dominar a ciência e a técnica o coitado percebe, de repente, que nada possui e que não é senhor nem da natureza nem da História – e, mais ainda, nem de si mesmo porque, verdadíssima, o Homem é conduzido por forças irracionais da sua alma.
Porque o Homem tem alma. Deus foi embora e o planeta, o Homem, caminha no vazio sem nenhum senhor: eis, mais uma vez, a insustentável leveza do ser. (Milan Kundera, 2009, p. 45)
Para Milan Kundera, a leveza insustentável é intuitivamente caudatária do afastamento, ou morte, de Deus – da dissolução do imperativo ético supra-humano. Sabemos todos que esta é uma provocação de Nietzsche à hipocrisia da moralidade cristã: dizer que Deus se afastou, é dizer que não há uma receita moral, na qual possamos justificar as nossas crenças e orientar a nossa conduta, nem tampouco fundamentar as nossas instituições e práticas – uma vez que a tal receita implica a negação da corporeidade e da individuação da pessoa humana.
É o perverso niilismo.
A verdade de Nietzsche em Milan Kundera
Ao tematizar a morte de Deus, Nietzsche quer apontar também para a morte do que chama de “impulso à verdade”. Ora pensar na verdade como o que garante a legitimidade do conhecimento, no conhecimento como o acento do essencialmente humano e na cultura como a reunião das asserções de conhecimento, é um modo iluminista-racionalista (de base platónica) de atribuir um sentido à vida humana.
Assim, a verdade é algo dado mas que se mantém camuflado até que a aplicação correcta do espírito possa descobri-la. Nisso consiste a missão do ser humano na terra. Todavia Nietzsche, veementemente, nega esta narrativa e a sua ideia de verdade é de algo inventado e não descoberto. Verdade é “um batalhão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos…” (Nietzsche, 1991, p. 34).
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