Gabriel García Márquez conta que Florentino Ariza acrescenta, e alimenta, um amor com mais de cinquenta anos por Fermina – a quem jurou amor eterno e deu uma espera de vida ou, pelo menos, uma vida de espera até à morte de seu marido Juvenal Urbino que representa o casamento conveniente tão actual durante toda a história do Homem.
Em tempos de cólera, o amor
A história, de amor com envelhecimento e morte dentro, é narrada em um realismo fantástico – característica adorável de Gabriel García Márquez. Será isto, isto que sinto, amor? E se é, como não ter a certeza de que não morre? E sendo, por que não há-de consumar-se na experiência que é viver? São estas, muito mais do que meras questões, as premissas desta história antiga e quase moderna: antiga porque se passa em um outro tempo e quase moderna porque, atemporal como se queria (ou como eu queria), não constitui regra essa coisa de o amor ter de ser cumprido, não há tempo, no nosso, que o valha como aquilo que vale a pena.
Rendilhados de histórias contam uma história pela mão de Gabriel García Márquez que, no entanto, não é uma história qualquer: é a história de um sentimento que se esgota – mesmo sem se esgotar – na alma. Porque o corpo serviu para o prazer; o corpo serviu para a carne viver, esfregando-se, na carne. Será amor aquele que vive pela metade?
Intensidade, paixão, loucura, tristeza, revolta. Está tudo lá, naquela trama nada tramada de se ler. Está o feminino repelente caricaturado – assim como está o machismo empoleirado. Está a ascensão social e o dia trivial; está a mancha da prostituição caseira, aquela que dá o corpo pela alma que se quer inteira. Está lá tudo. E tão bem contado, como só o Gabriel García Márquez sabe contar.
Encantadora maturidade
“Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado.” Não é a inocência a mais madura de todas as fragilidades perante o que é sentir? Mas sentir tão completamente que se chega a ter a certeza de que quem amamos afinal não é, não pode ser, bicho mas sim gente?
Cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias
e um único caminho, tantos atalhos, tantos trabalhos. Nunca se revoltou, ou pelo menos nunca a revolta se cansou de amansar, com aquela mulher detestável. Porque, para mim, Fermina simboliza todos os que renunciam ao amor. E quem quer que seja que renuncie ao amor, ao amor limpo e feliz como o de Florentino, poderá ser adorável?
História alterada
No meu fim da história, Florentino viria a descobrir que se encantara por uma farsa desprezível que morreria a suplicar o seu perdão. Florentino iria beijá-la na testa e entregava-lhe a morte que já fora dele, não um dia, mais de meio século.
E o amor embrulhava-se de presente, agora sim, para a ele se abrir. Mas esta é a história do Gabriel García Márquez, não minha, que quis perpetuar o chavão de que quem ama tudo aguenta, tudo teima – até o coração daquele que mostra que não queima. Porque esta é uma história que faz vencer quem não merece – é uma derrota ao coração que, não se deixando padecer, padece.
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